O Amor semeado em 20 de Setembro de 1950

Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]


Um destes dias, no começo deste ano, estive na minha terra natal, e, como sempre que vou por lá, há um ritual que faz parte das minhas visitas. Percorrer a Rua da Espanha, entrar pela Rua Estreita, e, parar no Largo da Bica.
Antes, passo pela Avenida da República, olho para os passeios, recordo as guaritas, a draga, os botes, e aquele recanto junto ao Guadiana, e, ali, paro a olhar o Guadiana frente à porta da minha casa, que era perto da Barbearia do Zé Tacão.
Recordo como gostava de estar por ali sentado, nas margens do rio, a olhar a dança das gaivotas, ou, entrar para dentro dos botes e sentir os movimentos ritmados, numa dança fruto da ondulação, que resultavam do vaivém das traineiras e enviadas, ora rumo ao mar, ora do regresso do mar, naquela faina quotidiana, que dava uma vida imensa aos cais e às margens do rio. Tanta vida. Tanta gente.
Tempos que guardo na memória, esse lugar onde guardamos os momentos vividos que, afinal, são eles que dão vida ao coração.
Mas, voltando ao início desta nota, na verdade, no começo deste ano, estive na minha terra e, recordo que no decorrer de um almoço com amigos falou-se da vida de outrora na Rua da Espanha. E na conversa falou-se dos tempos duros de inverno, quando a faina do mar parava e as fábricas encerravam as portas. Tempos difíceis. Falou-se de fome. E sim havia fome. Havia dor e mágoa.
Eu comentei: “Nunca passei fome”. Alguém comentou que naquela rua havia fome e bastante fome.
Hoje, recordo, essa conversa, que ficou em eco no meu pensamento. E sobre ela reflecti.
E penso, que, sendo real que havia fome e muitas situações de tristeza naquela rua, por vezes de famílias de muitos irmãos. Eu nunca soube o que era a fome. Ah, é verdade, senti o que era a fome em Lisboa, quando vim viver para a capital com o meu pai.
Na Rua da Espanha, andei descalço. Houve, até, quem me oferecesse roupas para vestir. Fome nunca passei.
Comer nunca faltou, fossem papas de milho, papas de farinha, fossem sardinhas «cuchadas», fosse sopa que se ia comprar à Pensão Mateus, fosse o peixe que meu tio pescava no rio, charrocos, robalos, linguados, mucharras, mujos. Frito ou cozido, que saborosos.
Nas horas de comer na mesa havia sempre alguma coisa para alimentar a esperança. Aquele arroz com conquilha, lingueirão ou berbigão. Ou, a comida que a minha avó trazia para casa, após ter concluído o serviço que prestava ao lavar a louça e cozinhar para a minha Madrinha Carmina, a esposa do Estrela, da Junta de Freguesia.
A minha avó era uma grande guerreira. Uma senhora de grande nobreza.
É verdade, foi graças a ela que nunca passei fome, e, tudo isto ocorre à memória, neste dia 14 de Setembro, quando recordo os 46 anos da sua partida para o infinito. Tinha então 75 anos.
Grande heroína e guerreira foi a minha avó Rita, ela, até, podia não comer, fingir que comia, mas para os seus netos – Tonico e a minha irmã Zefa, lá estava sempre o que era importante. Comer nunca faltou.
Podia faltar o petróleo para o candeeiro e acendiam-se umas lamparinas.
Mas o comer que ela cozinhava com tanta ternura, esse nunca faltou: o arroz de tomate, o arroz de feijão, a torrada com café. Sim, o café com açúcar amarelo. Aquela sopa de conquilha ou berbigão.
O peixe frito, nem que fosse apenas, frito numa “esquita de azeite” que se ia comprar a Loja da esquina, na Rua da Princesa. Onde viveram os meus outros avós – o avó Calafate - que não conheci.
A minha avó Rita era uma ternura. Sempre a olhar de olhos nos olhos. Senhora de si, pequenina e franzina, mas senhora do seu querer e ser. Amava a vida.
Vamos para a mesa. E lá íamos, todos, ali, à noite iluminados pela luz do candeeiro de petróleo. Nesse tempo a água ia buscar-se à fonte da bica, com um cântaro.
E, na mesa daquela casa pequenina e de grande sobriedade, na esquina da Rua da Espanha, com a Rua Estreita, o tempo era de amor. Foi sempre de amor.
Recordo tudo isto, hoje e agora. neste dia, 14 de setembro de 2023, porque este, na verdade, é um dia gravado no meu peito. É o dia da avó Rita.
Sempre que vou a Vila Real, é obrigatório, passar por lá, naquele recanto do Cemitério para dar um beijo à minha avó e à minha mãe, que estão, ali, as duas juntas, para a eternidade. E, num ritual, depois vou ver a família, tios e tias, primos, e, por fim, quando percorro aqueles recantos de silêncio, encontro rostos de tantos amigos de infância. E sinto ali, as minhas raízes, aquela é a terra que me viu nascer. O Barreiro é a terra dos meus filhos e neta.
É verdade, a minha avó, que tanto me amou, é um exemplo de vida que guardo, pela sua dignidade, pela sua frontalidade, por escrever a sua vida com a palavra amor e respeito.
A sua ambição foi sempre viver de cabeça erguida, ter de comer e um lar para viver. A casa, o pão, habitação, saúde, tudo com dignidade.
Era uma guerreira. Uma lutadora. Uma apaixonada pela vida. Sempre vestida de negro, a cor do luto e da dor, uma mulher operária conserveira, como muitas da Rua da Espanha, casada com um pescador do Guadiana, gente com raízes nas gentes que estão na génese da terra fundada por Marquês Pombal.
Gente que talvez tivesse raízes nas gentes de Arrenilha de Santo António, que ficou destruída com o terramoto de 1755. Depois, uns ficaram, outros partiram para Espanha, por isso tenho família espalhada por Isla Cristina, Higuerita ou Huelva.
Porque recordo tudo isto, neste dia de setembro, porque estas recordações fazem florir na minha mente o sabor da palavra amor. O amor que guardo na minha memória. O amor que se escreve dignidade.
Essa dignidade com a qual a minha avó viveu a sua vida, sempre vestida de negro, mas de cabeça erguida e com o orgulho que tinha nos nervos que a fazia viver e amar a vida. Sempre, vivendo do seu trabalho, sem vender a dignidade. Isso é tão belo.
Foi isso que aprendi com a minha avó Rita, a viver, olhando a vida de frente e amando o futuro com a palavras esperança, escrevendo nos dias a palavra dignidade e superando as dificuldades com paixão pelos dias.
Vivi dificuldades. Frio. Escuridão. Fome nunca senti, ali, naquela casa na esquina da Rua da Espanha, com a Rua Estreita…a azinhaga da minha infância.
Avó Rita. Recordo-te. Recordar-te-ei sempre que escrever a palavra dignidade e sentir que, na verdade, é com amor que abraçamos a vida e entrelaçamos o futuro com os nervos.
Obrigado, avó - guerreira e heroína.
António Sousa Pereira

Ontem, a convite da minha amiga Isabel Braga, entrei numa «tertúlia zoom», na qual participaram antigos alunos do Externato de Vila Real de Santo António, a minha terra natal. Não fui aluno do Externato. Recordo quando as suas instalações eram na «avenida», ali, em frente ao «Café Empurre», e, mais tarde passaram para «zona do farol», junto à Escola do Ensino Primária dos «moços», mesmo por trás da Cantina.
Foto- Aguarela de Gavino Mascarenhas
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.